segunda-feira, 20 de maio de 2013

Na Guatemala, Justiça derruba lei de anistia e condena ditador

Efraín Ríos Montt, o sanguinário ditador que aterrorizou a Guatemala no início dos anos oitenta, foi finalmente condenado pela Justiça de seu país, a 80 anos de prisão, por crime de genocídio e delitos contra a humanidade. Perdeu vigência, assim, a lei de anistia proclamada pelos militares na véspera de passar o poder aos civis, há dezessete anos.

Por Eric Nepomuceno

Mão de ferro, coração perverso, alma cruel, botas de chumbo: com esse instrumental Efraín Ríos Montt foi o sanguinário ditador de turno na Guatemala, entre março de 1982 e agosto de 1983.

Dezessete meses para que o general da Bíblia incendiária e da palavra veemente deixasse sua contribuição indelével para o massacre de um país massacrado e para o genocídio metódico que arrasou etnias indígenas ao longo de décadas. 

Um dos feitos mais extraordinários de Ríos Montt, um cristão fundamentalista de uma dessas seitas evangélicas desmesuradas, foi ter conseguido ser especialmente cruel numa era de extrema crueldade em seu país. Os indígenas, que formam a imensa maioria da população, padeceram bestialidades permanentes. 

Não foi ele o único verdugo em décadas de sangue. Mas, vale recordar: soube se destacar pela fúria sangrenta. Apoiado veementemente por Ronald Reagan, recebeu armamento de Israel para apetrechar tropas cuja missão única era, com o pretexto de enfrentar a guerrilha, arrasar aldeias inteiras de diversas etnias maia, violando mulheres de todas as idades, assassinando homens, triturando anciãos. Durante seu reino de sombras os kaibiles mostram a face dupla de uma crueldade sem limites: eram as tropas que com mais sanha se lançavam contra aldeias indígenas. Amarga ironia: os kaibiles eram indígenas treinados para ser especialmente cruéis. Eram os mais desalmados contra seus iguais. 

Pois agora esse ancião de 86 anos e olhar perdido conheceu o que sempre negou a quem perseguiu e aniquilou: justiça. No final, a sentença: 80 anos de prisão, por crime de genocídio e delitos contra a humanidade. Perdeu vigência, assim, a lei de anistia proclamada pelos militares na véspera de passar o poder aos civis, há dezessete anos. 

Agora, caberá à juiza de nome suave – Jazmín Barrios – convocar mais militares genocidas, mais assassinos perversos, para prestar contas. 

A Guatemala padeceu quatro décadas de barbárie, desde o golpe implantado por Washington contra o governo progressista de Jacobo Árbenz, em 1954. Dois anos depois começou o massacre que só terminaria em 1996, com os acordos de paz assinados após um saldo macabro de pelo menos 250 mil mortos. Durante essas quatro décadas, os indígenas formaram a maioria das vítimas. Etnias foram dizimadas. Só no período de Ríos Montt, os maia-ixil perderam 33% de sua população. Foi um genocídio prolongado, que alcançou seu auge justamente com Ríos Montt.

A reação dos militares e dos empresários da direita mais recalcitrante ao julgamento do ancião genocida foi dura. Acusam o tribunal de perseguição política, e os advogados de Ríos Montt já avisaram que vão apelar. Aliás, dentro do próprio poder judiciário há correntes que defendam que, no julgamento da apelação, se decida por anular todo o processo e recomeçar do zero. 

Não faltam, é claro, ameaças de que o julgamento pode ser o estopim para novos focos de violência. Fala-se em revanchismo e assegura-se que, nos quartéis, a sensação é de mal-estar e frustração. Fala-se que estão atropelando a lei de anistia.

Há, enfim, uma clima de tensa inquietação na Guatemala, e é natural que assim seja. O país não tem tradição alguma além de uma justiça sempre inclinada a proteger a impunidade dos poderosos e ignorar os direitos das vítimas, especialmente quanto se trata de camponeses e indígenas. Basta recordar que desde 1999 havia tentativas de julgar Ríos Montt pelas matanças dos maia-ixil na região do Quiché levadas a cabo pelo exército que obedecia a ele. Só em janeiro de 2012 foi possível começar o processo, que agora chegou ao fim.

Seu julgamento abriu espaço para que os indígenas fossem ouvidos pela primeira vez. E assim, pela primeira vez a Guatemala ouviu uma verdade que já era conhecida mas permanecia calada, ignorada: os relatos dos sobreviventes foram demolidores. 

Ríos Montt ouviu tudo em silêncio. E quando falou, foi para dizer que na verdade ele não tinha poder algum: era apenas chefe de Estado. Suas únicas ações junto às tropas era ‘conceder condecorações e dar pensões’. Na tentativa de demonstrar sua impotência diante dos fatos, fez uma revelação importante: disse que até o embaixador dos Estados Unidos sabia mais do que ele, já que todas as operações militares eram pagas com dinheiro norte-americano. Nesse última parte, todo mundo acreditou. Na inocente impotência do genocida, não. 

A mesma sentença determina que os três poderes guatemaltecos – executivo, legislativo e judiciário – deverão pedir perdão aos maia-ixil pelo massacre sofrido durante o período de Ríos Montt ditador. O tribunal esclarece que não se trata de um pedido de perdão do Estado guatemalteco, mas de reparação a ser propiciada pelos três poderes. Serão desenvolvidos programas sociais e culturais de apoio aos maia-ixil, e haverá marcos e centros populares de cultura relembrando o genocídio sofrido. 

Tudo muito simbólico, é verdade. Mas num país tão dividido, com uma elite que continua reservando o mesmo desprezo boçal pelas comunidades indígenas e que continua querendo preservar a impunidade dos militares, não deixa de ser uma iniciativa de peso.

O que virá a seguir, ninguém sabe. Ir fundo nas investigações de altos mandos militares em massacres coletivos pode salpicar o próprio presidente Otto Pérez Molina, eleito pelo voto popular: ele é general da reserva, e foi especialmente ativo nas ditaduras. 

É considerável, sim, o risco de uma reação mais dura dos militares e dos setores mais poderosos da economia contra a condenação de Ríos Montt. Mas não deixa de ser um julgamento histórico numa Guatemala que está longe de cicatrizar suas feridas.

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