terça-feira, 31 de julho de 2012

Comitês estaduais acionam alerta à Comissão da Verdade

Membros da Comissão da Verdade

Agilidade nos trabalhos, investigar também os abusos cometidos contra os índios durante o regime militar e divulgar o orçamento com que trabalha foram algumas das cobranças feitas pelos comitês estaduais à Comissão Nacional da Verdade nesta 2ª feira, em Brasília. Compostos por organizações da sociedade civil, de combatentes, parlamentares das assembleias legislativas, vereadores e familiares de presos políticos mortos durante a ditadura, cerca de 40 representantes desses comitês se reuniram com os membros da Comissão Nacional e acionaram sinais de alerta que merecem toda nossa atenção. 

"A comissão tem que partir do que já está feito e avançar. Tem que exigir a abertura de todos os arquivos ainda não abertos. Suas audiências tem que ser públicas. A comissão deve ter um mecanismo ágil para receber as denúncias e processar esses documentos” cobrou, muito acertadamente, Iara Xavier, do Comitê pela Verdade, Memória e Justiça do DF. Em relação às expectativas sobre a Comissão Nacional da Verdade, Iara não se deixou intimidar pelas dificuldades existentes: “Queremos o impossível!”.

Outra preocupação foi levantada por Francisco Celso Calmon, do Fórum Memória e Verdade do Espírito Santo. Ante o curto prazo dos trabalhos – a Comissão foi instaurada em 16 de março de 2012 e tem agora apenas 1 ano e 9 meses de trabalho – ele se manifestou no sentido de que “o resultado do relatório não sirva ao arquivo morto da nação, mas que seja um relatório vivo para que se criminalize os que cometeram crimes contra a humanidade.”

O curto prazo para a entrega dos trabalhos também é a preocupação de Diego Oliveira do Comitê Santa-Mariense de Direito à Memória e à Verdade, de Santa Maria (RS). “O efetivo reduzido prazo da comissão seria compensado com a dedicação exclusiva”, afirmou. Ele pede dedicação exclusiva, a divulgação do valor previsto para a execução dos trabalhos e denuncia a falta de autonomia orçamentária da Comissão, hoje vinculada à Casa Civil. 

Dipp: “Vamos trabalhar em sintonia”

Os comitês estaduais se colocaram à disposição para tomar depoimentos dos combatentes e entregar à Comissão Nacional todos os documentos que possuem. A importância da união de forças foi reforçada pelo coordenador da instância nacional, ministro Gilson Dipp. Ele também avaliou os riscos levantados durante a reunião.

“Temos essa demanda natural, muitas vezes até reprimida, mas o importante é que vamos trabalhar com apoio e em sintonia com todos os comitês estaduais para que eles possam realizar algumas das tarefas nos Estados para que possamos fazer a triagem”, afirmou Dipp.

Todos os alertas e as cobranças feitas pelos comitês na reunião são fontes de problemas existentes e nos preocupam. De fato, o tempo é curto e a necessidade da dedicação exclusiva é real. Como eles, também estou muito preocupado com o ritmo da Comissão. Sem falar que tem sim de ser tudo público. Sessões secretas, nem pensar.

(Foto: Roberto Stuckert Filho/PR)

segunda-feira, 30 de julho de 2012

MPF denuncia major da reserva por sequestro e morte no Araguaia

O Ministério Público Federal (MPF) denunciou à Justiça o major da reserva Lício Augusto Maciel pelo sequestro do militante do PCdoB Divino Ferreira de Souza, o Nunes, capturado ilegalmente pelo Exército em 1973 e desaparecido desde então.

Também conhecido como Doutor Asdrúbal, o militar participou, há 40 anos, da Operação Marajoara, que pôs fim à Guerrilha do Araguaia, a maior ação de resistência armada à ditadura militar brasileira. Assassino confesso de pelo menos quatro guerrilheiros, Lício Maciel permanece impune.

A denúncia do MPF segue determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos que, em sentença de 2010, condenou o Brasil a apurar os crimes de lesa-humanidade ocorridos durante a guerrilha. Como a interpretação que o Supremo Tribunal Federal (STF) faz da Lei da Anistia, de 1979, impede que militares sejam punidos por crimes como assassinato e tortura, o MPF enquadrou o Doutor Asdrúbal pelo sequestro de Divino, considerado imprescritível.

Divino foi emboscado no dia 14 de outubro de 1973, na região do município de São Domingos do Araguaia (PA). De acordo com o MPF, ele e os companheiros André Grabois, o Zé Carlos, João Gualberto Calatroni, o Zebão, e Antônio Alfredo de Lima, o Alfredo, foram cercados quando abatiam porcos e não tinham nenhuma chance de reagir. Grabois, Calatroni e Lima foram executados na hora e Divino, sequestrado e levado com vida para a base militar da Casa Azul, em Marabá. Apesar de ferido, foi interrogado e submetido a grave sofrimento físico. Nunca mais foi visto.

Dez dias depois, Lício Maciel seria responsável pela morte da guerrilheira Lúcia Maria de Souza, a Sônia, executada imediatamente após reagir ao ataque dos militares e ferir o major no braço e no rosto. Bem antes, já havia se notabilizado pela prisão do também guerrilheiro José Genoíno, que viria a se tornar presidente do PT.

O ódio do militar pela esquerda é tamanho que, em 2005, chegou a insinuar que Genoíno foi o verdadeiro responsável pelas mortes dos companheiros, já que, quando preso, delatou como funcionavam as bases da guerrilha, mesmo sem sofrer tortura ou ameaça. “Genoino, olhe no meu olho, você está me vendo. Eu prendi você na mata e não toquei num fio de cabelo seu. Não lhe demos uma facãozada, não lhe demos uma bolacha – coisa de que me arrependo hoje”, disse ele, em discurso proferido na Câmara dos Deputados, durante sessão solene em homenagem aos militares que atuaram no Araguaia.

Tratado como um verdadeiro herói de guerra por outros militares de ultradireita, Maciel sempre se gabou de sua participação na guerrilha. “Tenho imenso orgulho de ter participado dessa luta, por ter agido positivamente para evitar que os guerrilheiros do PCdoB implantassem no país um regime comunista igual ao de Cuba, com paredão e tudo”, declarou ele, no mesmo discurso de 2005.

Em 2010, voltou a confirmar os assassinatos e prisões em depoimento à Justiça. Entretanto, disse que os guerrilheiros foram mortos em combate e se eximiu da culpa pelo desaparecimento de Divino que, segundo ele, foi devidamente entregue à base militar. Pelo menos duas testemunhas rechaçam a tese: o militar José Vargas Jimenez, que escreveu um livrosobre a repressão à guerrilha e depois confirmou as informações em depoimento oficial às autoridades brasileiras, e Manoel Leal Lima, o Vanu, que servia de guia para o grupo de militares durante a emboscada. Ambos ressaltam que os militares armaram uma emboscada para os militantes. E, ainda, que Divino foi submetido à grande tortura.

- Nessa etapa houve o deliberado e definitivo abandono do sistema normativo vigente, pois decidiu-se claramente pela adoção sistemática de medidas ilegais e violentas, promovendo-se então o sequestro ou a execução sumária dos militantes. Não há notícias de sequer um militante que, privado da liberdade pelas Forças Armadas durante a Operação Marajoara, tenha sido encontrado livre posteriormente – esclarece a denúncia do MPF.

Memória

Divino nasceu em Goiânia, em 1942, e, em 1961, se tornou membro da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes). Em 1966, deixou o país, retornando um ano depois para viver na clandestinidade, na região do Brejo Grande, próximo ao Rio Araguaia. Foi nesta época que, atuando como agricultor e comerciante, passou a ser conhecido como Nunes.

Sua irmã, Terezinha Souza Amorim, afirma que a família jamais deixou de buscar a verdade sobre o que aconteceu, sem sucesso. “Em 2004, minha mãe faleceu sem ter obtido informações do Estado brasileiro sobre o que aconteceu com o Divino, após lutar até o fim da vida para o encontrar. Hoje, a minha luta e de outros familiares de mortos e desaparecidos é para que a sociedade conheça a verdadeira história, para que o estado nos esclareça o que aconteceu com nossos entes queridos e para que os responsáveis por todos esses anos de angústia e desespero sejam responsabilizados”, esclarece.

Justiça

Lício Maciel é o terceiro militar denunciado por crimes de lesa-humanidade cometidos durante a ditadura. O primeiro foi justamente o seu parceiro de combate à guerrilha do Araguaia, Sebastião Curió Rodrigues, o Major Curió. A ação foi recusada pela primeira instância, mas o MPF recorreu e aguarda decisão. O segundo é o ex-diretor do DOI/CODI, coronel Brilhante Ustra.

A denúncia contra Lício Maciel foi distribuída para a 2ª Vara Federal do Pará e, desde 19 de julho, aguarda decisão da juíza Nair Pimenta de Castro.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Grupo Tortura Nunca Mais no Rio sofre invasão

Uma das maiores entidades do país na luta pelos direitos humanos, o Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM), teve sua sede no Rio invadida na última quinta-feira (19.07). As investigações continuam e contarão com o acompanhamento da Polícia Federal (PF).

“No dia 11, nós recebemos um telefonema de ameaça dizendo “isso aí vai acabar e nós vamos voltar”. No dia 19, quando nossa secretária chegou aqui, ela viu a janela aberta e todas as gavetas reviradas”, conta Victória Grabois, diretora do GTNM-RJ. Em face à ameaça e à invasão, foi feito um registro de ocorrência (RO) na polícia carioca.

Victória conta que a ministra Maria do Rosário (Direitos Humanos) telefonou para a sede do Grupo e que ambas conversaram. Elas avaliaram a necessidade de a Polícia Federal (PF) acompanhar o caso. “Imediatamente ela conversou com o ministro Cardozo (Justiça)”, conta a diretora do GTNM-RJ.

Em nota, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos considerou o ataque inaceitável. “Mais grave se torna o fato diante da dedicação do grupo Tortura Nunca Mais à democracia e à recuperação histórica dos fatos ocorridos no Brasil durante a ditadura militar e no combate à tortura nos dias de hoje. Diante do momento que o País vive, de recuperação da memória e da verdade para afirmação da nossa democracia, consideramos fundamental que os episódios sejam rapidamente investigados e solucionados”, (Clique aqui e confira a íntegra da nota)

Projeto Clínico atende vítimas de violência

Durante o ataque, os invasores levaram dinheiro do caixa e documentos do Projeto Clínico Grupal, um trabalho realizado há vinte anos pelo GTNM. O Grupo, explica Victória, é uma entidade fundada há 27 anos que começou com pesquisas sobre as circunstâncias da morte e a localização de mortos e desaparecidos políticos no país, e também para lutar contra a impunidade e a violência.

“A partir de 1992, com financiamento das Nações Unidas e de outras instituições, o Grupo criou uma equipe clínica e multidisciplinar para atender as vítimas da violência do passado, como ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos. Mas, como o Estado brasileiro nunca teve uma política de saúde pública mental, nós atendemos hoje as vítimas de violência do Rio e até militantes de direitos humanos ameaçados de morte”, complementa Victória.

Sobre a ameaça recebida no último dia 11, a presidente do GTNM avalia que o Grupo sempre recebeu ameaças, “mas antes eles as mandavam por cartas. Agora, estão mais ‘sofisticados’”. Na sua visão, o episódio está ligado a todo o trabalho do Grupo ao longo desses 27 anos de luta contra a violência e contra a impunidade.

“E agora, com a Comissão da Verdade, nós estamos fazendo críticas por ela ser só Comissão da Verdade. Nós queremos uma Comissão da Verdade e da Justiça, para que essas pessoas sejam responsabilizadas. Isso deve estar incomodando”, complementa.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

41 anos do golpe militar

Ao assumir em 1986 o cargo de ministro-chefe do Serviço Nacional de Informação (SNI), a convite do então presidente José Sarney, o general Ivan de Souza Mendes constatou que dois dos principais quadros da agência durante o governo João Baptista Figueiredo (1978-1984) – os coronéis Ary Pereira de Carvalho, o Arizinho, e Ary de Aguiar Freire – gozavam de uma prolongada mordomia no Exterior que fugia dos protocolos normais do governo. Homem de confiança do ex-chefe do SNI, general Octávio Medeiros, desde 1969, quando o ajudou na operação que resultou na queda dos militantes de esquerda do Colina (Comando de Libertação Nacional), em Belo Horizonte, Arizinho se encontrava em Buenos Aires, onde engordava sua aposentadoria com abono de US$ 6 mil mensais por serviços de espionagem. A mesma regalia era desfrutada pelo coronel Ary Aguiar – homem forte de Medeiros na agência cen tral do SNI no Rio de Janeiro –, lotado em Genebra, na Suíça. “Ficou claro que eles estavam no Exterior escondidos porque tinham feito algo errado. Por isso pedi que retornassem imediatamente”, disse Ivan de Souza Mendes, recentemente, a um grupo de militares amigos.

Como morreu Baumgarten - Por Amaury Ribeiro Jr.


Misteriosamente, dois coronéis ligados ao Garra, grupo secreto de operações do SNI, partiram para o Exterior dias depois da morte do jornalista.

Ao assumir em 1986 o cargo de ministro-chefe do Serviço Nacional de Informação (SNI), a convite do então presidente José Sarney, o general Ivan de Souza Mendes constatou que dois dos principais quadros da agência durante o governo João Baptista Figueiredo (1978-1984) – os coronéis Ary Pereira de Carvalho, o Arizinho, e Ary de Aguiar Freire – gozavam de uma prolongada mordomia no Exterior que fugia dos protocolos normais do governo. Homem de confiança do ex-chefe do SNI, general Octávio Medeiros, desde 1969, quando o ajudou na operação que resultou na queda dos militantes de esquerda do Colina (Comando de Libertação Nacional), em Belo Horizonte, Arizinho se encontrava em Buenos Aires, onde engordava sua aposentadoria com abono de US$ 6 mil mensais por serviços de espionagem. A mesma regalia era desfrutada pelo coronel Ary Aguiar – homem forte de Medeiros na agência cen tral do SNI no Rio de Janeiro –, lotado em Genebra, na Suíça. “Ficou claro que eles estavam no Exterior escondidos porque tinham feito algo errado. Por isso pedi que retornassem imediatamente”, disse Ivan de Souza Mendes, recentemente, a um grupo de militares amigos.

A conclusão do general estava baseada numa coincidência intrigante. Os dois “Arys” debandaram dias depois de terem sido envolvidos no assassinato do jornalista Alexandre Von Baumgarten, em outubro de 1982. Dois dias antes de morrer, o jornalista compôs um dossiê que envolvia membros do SNI num plano para assassiná-lo. No chamado Dossiê Baumgarten, os dois oficiais são acusados de terem participado da reunião em que foi decidida a sua morte.

A participação dos oficiais do SNI e de qualquer outro suspeito do assassinato do jornalista nunca foi comprovada. Apontado como principal testemunha do processo, o bailarino Claudio Werner Polila, o Jiló, apresentou uma versão fantasiosa alimentada pela imprensa e pela polícia na época, que acabou tirando o foco principal da investigação. Embora sofresse de problemas visuais, Polila declarou ter presenciado o sequestro do jornalista, de sua mulher, Janete Hansen, e do barqueiro Manoel Valente por ninguém menos que o chefe da Agência Central do SNI, o general Newton Cruz.

Esse mistério, no entanto, já havia sido desvendado no 14 de outubro, um dia depois do desaparecimento do jornalista, por agentes do CIE de Brasília. Responsável pela análise dos fatos da semana, o então agente no Distrito Federal, Marival Dias, teve acesso a um informe interno que caiu como uma bomba na comunidade de informação. “A notícia interna dizia que o Doutor César (o coronel José Brant) tinha comandado uma operação do Garra – braço armado das ações clandestinas do SNI –, que resultou na morte do Baumgarten”, disse Marival. Os detalhes do assassinato do jornalista foram passados a Marival pelo cabo Félix Freire Dias, o mesmo que cortava os ossos dos presos políticos na Casa de Petrópolis e participou de várias operações de captura e execução com o Doutor César no CIE.

De acordo com Marival, o Doutor César recebeu ordens para dar uma dura no jornalista e recuperar as provas que ele estaria usando para chantagear o SNI. “Mas, ao chegar no Rio, o Doutor César, oficial nervoso recém-chegado do CIE, acabou matando o jornalista, o que o obrigou a eliminar também sua mulher e o barqueiro Manuel.”

Pescaria – Marival esclarece que, quando a notícia chegou ao CIE, o corpo ainda não havia aparecido na praia e a imprensa nem especulava sobre o caso. De fato, o jornalista, que saiu no dia 13 de outubro para uma pescaria ao lado do barqueiro e da mulher, somente apareceu boiando doze dias depois na praia da Macumba, no bairro Recreio dos Bandeirantes. Segundo a perícia, ele não morrera por afogamento e havia marca de três tiros no cadáver. Dias depois, outros dois corpos carbonizados, apontados como sendo de Janete Hansen e do barqueiro, foram localizados em Teresópolis, mas até hoje não foram identificados pela perícia

Antigo colaborador dos serviços de informação do Exército, Baumgarten usava a revista O Cruzeiro, de sua propriedade, para defender teses favoráveis ao regime militar. Pelos serviços prestados, conseguiu que o SNI lhe fornecesse cartas destinadas a empresários nas quais pedia publicidade. Segundo um amigo do jornalista, que não quis se identificar, ele passou a usar o mesmo método para angariar fundos para a candidatura de Medeiros à Presidência da República. “Aí está a chave do crime”, afirma o amigo. Em seu dossiê, Baumgarten conta que acabou entrando em atrito com o SNI porque a ajuda do órgão à revista não estava sendo suficiente para mantê-la.
Emboscada – Nos órgãos onde trabalhou, Marival sempre atuou nos setores de análise e informações. Sua tarefa consistia no levantamento sobre prisões e mortes de presos políticos e no cruzamento de dados fornecidos pelos interrogados ou pelos chamados “cachorros”, militantes que colaboravam com a repressão. Essa função estratégica permitiu, segundo ele, acompanhar as principais ações do CIE comandadas pelo Doutor César, o coronel reformado José Brant Teixeira, e pelo Doutor Pablo, o coronel Paulo Malhães. “Ao contrário do major Sebastião Curió Rodriguez, figura carimbada que teve uma atuação restrita à Guerrilha do Araguaia, os doutores César e Pablo circulavam por todo o País e estavam envolvidos nas principais operações de prisão, execução e ocultação de corpos do CIE. No Araguaia, participaram da Operação Limpeza, escondendo os cadáveres dos guerrilheiros”, disse Marival.

O ex-agente conta que os dois coronéis ganharam fama dentro dos órgãos de repressão ao montar uma emboscada em Medianeira, cidade no sudoeste do Paraná, para atrair, no dia 11 de julho de 1974, um grupo argentino de militantes de esquerda e guerrilheiros. Comandados pelo ex-sargento Onofre Pinto, os militantes da VPR fugiram do Chile, acuados pela repressão no país, e passaram pela Argentina antes de regressarem ao Brasil. Malhães era ligado ao Dina, o serviço de inteligência chileno, e ganhou o codinome “Pablo” ao participar do gigantesco interrogatório seguido de torturas no Estádio Nacional de Santiago, logo após o golpe militar que derrubou o presidente chileno Salvador Allende.

Segundo Marival, Malhães montou a emboscada no Paraná com a ajuda da Dina e do ex-sargento Alberi Vieira dos Santos, da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, o responsável por atrair os militantes para uma área de guerrilha fictícia na zona rural de Medianeira. De acordo com Marival, Alberi havia sido preso em 1965, ao comandar uma tentativa de rebelião contra o regime em Três Passos (RS), e acabou se tornando informante do CIE infiltrado na VPR. A chácara usada para a área da falsa guerrilha foi arranjada pelo então capitão Areski de Assis Pinto Abarca, chefe do serviço de inteligência do Quartel do Exército de Foz do Iguaçu, que, após a operação, passou a integrar os quadros do CIE. Comandados pelo ex-sargento Onofre Pinto, o estudante argentino Enrique Ernesto Ruggia, 18 anos, e os guerrilheiros da VPR Daniel José Carvalho, Joel José de Carvalho, José Lavéc hia, Vitor Carlos Ramos e Gilberto Faria Lima, o Zorro, foram facilmente dominados pelos agentes do CIE ao chegarem na chácara de Medianeira.

“Presos, os irmãos Carvalho, Lavéchia, Vitor, Ruggia e Zorro foram torturados e executados imediatamente”, conta Marival. Em seu relato, diz que a vida do ex-sargento Onofre seria poupada porque, após ter sido torturado, ele teria aceitado colaborar com o Exército. Mas, ao consultar o implacável general Miltinho Tavares, chefe do CIE, Doutor Pablo recebeu ordem contrária. “Temos de acabar com ele para dar o exemplo e inibir a possibilidade de novas deserções”, teria respondido o general. Alberi também teria sido assassinado, como queima de arquivo, em 1977, no Paraná. Para o secretário Nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, esse episódio pode ter originado o diálogo entre o presidente Ernesto Giesel, empossado três meses antes da emboscada, e seu segurança, o tenente-coronel Germano Arnoldi Pedrozzo, revelado pelo jornalista Elio Gaspari no livro A ditadura derrotada: “Nessa hora tem de agir com muita inteligência para não ficar vestígio nessa coisa”, afirmou Giesel ao comentar a prisão e a morte de um grupo de sete pessoas, vindas do Chile e da Argentina, capturadas no Paraná.

Comandando uma rede de informantes do CIE, Doutor César e Doutor Pablo, segundo Marival, também foram responsáveis pelo planejamento e execução de uma megaoperação em inúmeros pontos do País para liquidar, a partir de 1973, os militantes das várias tendências da Ação Popular (AP), movimento de esquerda ligado à Igreja Católica. Segundo o ex-agente, entre os mortos estão Fernando Santa Cruz Oliveira, Paulo Stuart Wright, Eduardo Collier Filho e Honestino Monteiro Guimarães, militantes da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), movimento dissidente da AP. Irmão do reverendo Jaime Wright, Paulo Stuart foi preso e morto em São Paulo, em 1973. Os demais militantes também tombaram naquele ano e em 1974, no Rio. Antes de morrer, Honestino disse a amigos que estava sendo caçado pelos órgãos de informação do Exército em todo o País.

Operação Limpeza – Narradas por Marival, as histórias dos doutores do CIE parecem não ter fim. Em 1974, quando trabalhava em São Paulo, ele diz ter visto o coronel Brant chegar ao DOI-Codi com os dirigentes comunistas José Roman e David Capistrano, presos quando tentavam regressar ao Brasil pela fronteira do Uruguai. Segundo ele, ambos foram transferidos para a Casa de Petrópolis, onde morreram assassinados.

Em 1977, quando servia no Batalhão de Infantaria de Selva, Marival diz ter deparado novamente com Brant, que se dirigia ao Araguaia numa operação de controle para evitar a localização dos corpos dos guerrilheiros do PCdoB. Em 1981, a Operação Limpeza foi reforçada com a transferência de André Pereira Leite Filho, o Doutor Edgar, oficial do DOI-Codi de São Paulo, para o CIE de Brasília. Ele integrava a tropa de choque de Aldir Santos Maciel, que eliminou oito dirigentes do Comitê Central do PCB.

Preocupados com uma caravana liderada pelo advogado Paulo Fonteles, que se deslocou para o Araguaia na tentativa de localizar as ossadas de guerrilheiros, os agentes do CIE montaram uma operação, no início da década de 80, para amedrontar os moradores que pudessem fornecer informações sobre possíveis cemitérios clandestinos. De acordo com o relatório Hugo Abreu, encontrado entre a papelada do general Bandeira, a Operação Limpeza começou em janeiro de 1975 com “as transferências dos corpos dos guerrilheiros enterrados junto às bases militares do Exército para diversos outros pontos”. Essa política de ocultação de ossadas se estendeu para outras regiões próximas onde tombaram guerrilheiros de outras organizações.

Segundo Marival, em 1980 o Doutor Edgar comandou, por exemplo, uma expedição que retirou de uma fazenda em Rio Verde, em Goiás, as ossadas de Márcio Beck Machado e Maria Augusta Thomas, integrantes do Molipo (Movimento de Libertação Popular), mortos 1973 num confronto com agentes do CIE. De acordo com o fazendeiro Sebastião Cabral, os corpos enterrados em sua propriedade foram exumados por três homens em 1980, que deixaram para trás pequenos ossos e dentes perto das covas.

O cortador de ossos – Ao ser transferido para o CIE de Brasília, em 1981, Marival foi trabalhar ao lado de um dos homens mais sádicos da ditadura: o cabo Félix Freire Dias, cujos codinomes eram “Doutor Magro” e “Doutor Magno”. As confissões do agente do CIE, famoso por sua atuação na Casa de Petrópolis, no Rio, contribuíram para que Marival pedisse demissão do Exército, sem nenhum rendimento, no final do governo João Baptista Figueiredo (1979-1985). Durante a rotina de trabalho no CIE, Félix contou a Marival que cortava os corpos das vítimas em Petrópolis. Entre elas estava o ex-deputado federal Rubens Paiva, preso no dia 20 de janeiro de 1971, no Rio de Janeiro, por agentes do DOI-Codi.

“O Doutor Magno sentia um prazer mórbido em me contar que apostava com outro carcereiro quantos pedaços ia dar o corpo de determinado prisioneiro executado. As impressões digitais eram as primeiras partes a serem cortadas”, conta Marival. O destino daqueles corpos também foi relatado por Doutor Magno: “Ele me disse que os pedaços dos corpos, cortados nas juntas, eram colocados em sacos plásticos e enterrados em lugares diferentes para dificultar a localização.” Segundo Marival, a frieza e a morbidez de Félix, que começou no DOI-Codi como carcereiro, lhe valeram uma promoção para a tropa de elite do CIE. Designado para a Guerrilha do Araguaia, integrou-se à tropa de execução do Doutor Luquine, codinome do coronel Sebastião Curió Rodriguez. Do mesmo esquadrão passou a fazer parte ainda o cabo José Bonifácio Carvalho. Conhecido até hoje como Doutor Alexandre, Carvalho entrou nas fileiras do Exército no Pará e chegou ao CIE devido ao seu desempenho nos primeiros combates no Araguaia. “Os dois faziam todo o tipo de trabalho sujo para o Curió, que os presenteou com a presidência e a vice-presidência da Cooperativa de Garimpeiros de Serra Pelada.”

De acordo com um documento obtido por ISTOÉ, em 1º de março de 1985, às vésperas da posse de José Sarney, Félix deixou o Exército, aos 36 anos. No ano seguinte, em 31 de abril, assumiu a vice-presidência da cooperativa Mista de Garimpeiros de Serra Pelada, cujo presidente era o Doutor Alexandre. De 1993 a 1995, Doutor Magno trabalhou na Conab (Companhia Nacional de Abastecimento). “O Félix andava com um uniforme da Polícia Federal e junto com o Doutor Alexandre formava a dupla de Curió que aterrorizava os garimpeiros em Serra Pelada”, afirma Jane Resende, presidente da União Nacional dos Garimpeiros.

A história do Doutor Alexandre também é conhecida pelos garimpeiros. Após o término da Guerrilha, ele foi escalado por Curió para lotear as terras que deram origem a Curionópolis, cidade cujo atual prefeito é o próprio Curió. A distribuição de terras fez parte do projeto do Exército para ocupação do território por agentes do CIE, a fim evitar a localização dos corpos.

Disposto a esquecer o passado, o coronel Paulo Malhães, que entrou para o Exército em 1958, também foi para a reserva no dia 1º de dezembro de 1985, aos 47 anos, no apagar das luzes do regime militar. A mesma preocupação não teve, porém, seu ex-companheiro José Brant, que até 2001 ocupava um cargo de assessor especial da atual diretora da Abin, Mariza Diniz. Até hoje ele está na folha da Agência.

Um homem de decisões corajosas

Nos últimos 20 anos, Marival Chaves Dias, ex-agente do DOI-Codi, tem tomado decisões corajosas. Em 1985, com o fim do regime militar, pediu demissão do Exército, sem vencimentos, depois de 25 anos de serviços prestados em órgãos de repressão. Em janeiro deste ano, resolveu finalmente revelar o nome dos militares que executavam presos políticos.

ISTOÉ – Por que o sr. só deixou o Exército após o fim do regime?
Marival Dias – Todos os militares que se insurgiram contra a ditadura, sem exceção, foram mortos.

ISTOÉ – Mas parece que o cabo Anselmo está vivo.
Marival – Ele se tornou um infiltrado especial, porque até os militares infiltrados eram eliminados. Era tão sem escrúpulos que delatou a própria mulher, grávida, morta pela repressão.

ISTOÉ – Por que só agora o sr. resolveu revelar o nome dos matadores que sabem dos cemitérios clandestinos?
Marival – Para garantir a vida de minha família. Soltei aos poucos para perceber a reação. Revelei em solidariedade aos que não podem enterrar seus entes.

ISTOÉ – O sr. sofreu represálias?
Marival – Numa situação absurda da Justiça, estou perdendo minha casa, único bem da família, só por ter atrasado em dez dias uma prestação.

ISTOÉ – E o que tem a ver isso com o seu passado?
Marival – O processo foi politizado com a anexação de uma reportagem em que eu falava dos porões do DOI.

ISTOÉ –
E não dá para reverter?
Marival – Está difícil. O autor da ação morreu e o processo não foi extinto. Minha advogada, Lucineide Caliari, depois de receber os honorários, perdeu os prazos de defesa no STJ.

Fonte: Isto É - Edição: 1798 | 24.Mar.04
Disponível em: http://www.istoe.com.br/reportagens/27939_COMO+MORREU+BAUMGARTEN


terça-feira, 17 de julho de 2012

UM CARDEAL SEM PASSADO - José Ribamar Bessa Freire


 
O tratamento que a mídia deu à morte do cardeal dom Eugenio Sales, ocorrida na última segunda-feira, com direito à pomba branca no velório, me fez lembrar o filme alemão "Uma cidade sem passado", de 1990, dirigido por Michael Verhoven. Os dois casos são exemplos típicos de como o poder manipula as versões sobre a história, promove o esquecimento de fatos vergonhosos, inventa despudoradamente novas lembranças e usa a memória, assim construída, como um instrumento de controle e coerção.
 
O filme
 
Comecemos pelo filme, que se baseia em fatos históricos. Na década de 1980, o Ministério da Educação da Alemanha realiza um concurso de redação escolar, de âmbito nacional, cujo tema é "Minha cidade natal na época do III Reich". Milhares de estudantes se inscrevem, entre eles a jovem Sônia Rosenberger, que busca reconstituir a história de sua cidade, Pfilzing - como é denominada no filme - considerada até então baluarte da resistência antinazista.

Mas a estudante encontra oposição. As instituições locais de memória - o arquivo municipal, a biblioteca, a igreja e até mesmo o jornal Pfilzinger Morgen - fecham-lhe suas portas, apresentando desculpas esfarrapadas. Ninguém quer que uma "judia e comunista" futuque o passado. Sônia, porém, não desiste. Corre atrás. Busca os documentos orais. Entrevista pessoas próximas, familiares, vizinhos, que sobreviveram ao nazismo. As lembranças, contudo, são fragmentadas, descosturadas, não passam de fiapos sem sentido.
 
A jovem pesquisadora procura, então, as autoridades locais, que se recusam a falar e ainda consideram sua insistência como uma ameaça à manutenção da memória oficial, que é a garantia da ordem vigente. Por não ter acesso aos documentos, Sônia perde os prazos do concurso. Desconfiada, porém, de que debaixo daquele angu tinha caroço - perdão, de que sob aquele chucrute havia salsicha - resolve continuar pesquisando por conta própria, mesmo depois de formada, casada e com filhos, numa batalha desigual que durou alguns anos.
 
Hostilizada pelo poder civil e religioso, Sônia recorre ao Judiciário e entra com uma ação na qual reivindica o direito à informação. Ganha o processo e, finalmente, consegue ingressar nos arquivos. Foi aí, no meio da papelada, que ela descobriu, horrorizada, as razões da cortina de silêncio: sua cidade, longe de ter sido um bastião da resistência ao nazismo, havia sediado um campo de concentração. Lá, os nazistas prenderam, torturaram e mataram muita gente, com a cumplicidade ou a omissão de moradores, que tentaram, depois, apagar essa mancha vergonhosa da memória, forjando um passado que nunca existiu.
 
Os documentos registraram inclusive a prisão de um judeu, denunciado na época por dois padres, que no momento da pesquisa continuavam ainda vivos, vivíssimos, tentando impedir o acesso de Sônia aos registros. No entanto, o mais doloroso, era que aqueles que, ontem, haviam sido carrascos, cúmplices da opressão, posavam, hoje, como heróis da resistência e parceiros da liberdade. Quanto escárnio! Os safados haviam invertido os papéis. Por isso, ocultavam os documentos.
Deus tá vendo
 
E é aqui que entra a forma como a mídia cobriu a morte do cardeal dom Eugênio Sales, que comandou a Arquidiocese do Rio, com mão forte, ao longo de 30 anos (1971-2001), incluindo os anos de chumbo da ditadura militar. O que aconteceu nesse período? O Brasil já elegeu três presidentes que foram reprimidos pela ditadura, mas até hoje, não temos acesso aos principais documentos da repressão.
 
Se a Comissão Nacional da Verdade, instalada em maio último pela presidente Dilma Rousseff, pudesse criar, no campo da memória, algo similar à operação "Deus tá vendo", organizada pela Policia Civil do Rio Grande do Sul, talvez encontrássemos a resposta. Na tal operação, a Polícia prendeu na última quinta-feira quatro pastores evangélicos envolvidos em golpes na venda de automóveis. Seria o caso de 
perguntar: o que foi que Deus viu na época da ditadura militar?
 
Tem coisas que até Ele duvida. Tive a oportunidade de acompanhar a trajetória do cardeal Eugênio Sales, na qualidade de repórter da ASAPRESS, uma agência nacional de notícias arrendada pela CNBB em 1967. Também, cobri reuniões e assembleias da Conferência dos Bispos para os jornais do Rio - O Sol, O Paiz e Correio da Manhã, quando dom Eugênio era Arcebispo Primaz de Salvador. É a partir desse lugar que posso dar um modesto testemunho.
 
Os bispos que lutavam contra as arbitrariedades eram Helder Câmara, Waldir Calheiros, Cândido Padin, Paulo Evaristo Arns e alguns outros mais que foram vigiados e perseguidos. Mas não dom Eugênio, que jogava no time contrário. Um dos auxiliares de dom Helder, o padre Henrique, foi torturado até a morte em 1969, num crime que continua atravessado na garganta de todos nós e que esperamos seja esclarecido pela Comissão da Verdade. Padres e leigos foram presos e torturados, sem que escutássemos um pio de protesto de dom Eugênio, contrário à teologia da libertação e ao envolvimento da Igreja com os pobres.

Dom Eugenio e o general Medici
 
O cardeal Eugenio Sales era um homem do poder, que amava a pompa e o rapapé, muito atuante no campo político. Foi ele um dos inspiradores das "candocas" - como Stanislaw Ponte Preta chamava as senhoras da CAMDE, a Campanha da Mulher pela Democracia. As "candocas" desenvolveram trabalhos sociais nas favelas exclusivamente com o objetivo de mobilizar setores pobres para seus objetivos golpistas. Foram elas, as "candocas", que organizaram manifestações de rua contra o governo democraticamente eleito de João Goulart, incluindo a famigerada "Marcha da família com Deus pela liberdade", que apoiou o golpe militar, com financiamento de multinacionais, o que foi muito bem documentado pelo cientista político René Dreifuss, em seu livro "1964: A Conquista do Estado" (Vozes, 1981). Ele teve acesso ao Caixa 2 do IPES/IBAD.
 
Nós, toda a torcida do Flamengo e Deus que estava vendo tudo, sabíamos que dom Eugênio era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura. Se não sofro de amnésia - e não sofro de amnésia ou de qualquer doença neurodegenerativa - posso garantir que na época ele nem disfarçava, ao contrário manifestava publicamente orgulho do livre trânsito que tinha entre os militares e os poderosos.
- "Quem tem dúvidas...basta pesquisar os textos assinados por ele no JB e n'O Globo" - escreve a jornalista Hildegard Angel, que foi colunista dos dois jornais e avaliou assim a opção preferencial do cardeal:
- A Igreja Católica, no Rio, sob a égide de dom Eugenio Salles, foi cada vez mais se distanciando dos pobres e se aproximando, cultivando, cortejando as estruturas do poder. Isso não poderia acabar bem. Acabou no menor percentual de católicos no país: 45,8%...  
Portões do Sumaré 

Por isso, a jornalista estranhou - e nós também - a forma como o cardeal Eugenio Sales foi retratado no velório pelas autoridades. Ele foi apresentado como um combatente contra a ditadura, que abriu os portões da residência episcopal para abrigar os perseguidos políticos. O prefeito Eduardo Paes, em campanha eleitoral, declarou que o cardeal "defendeu a liberdade e os direitos individuais". O governador Sérgio Cabral e até o presidente do Senado, José Sarney, insistiram no mesmo tema, apresentando dom Eugênio como o campeão "do respeito às pessoas e aos direitos humanos".
Não foram só os políticos. O jornalista e acadêmico Luiz Paulo Horta escreveu que dom Eugênio chegou a abrigar no Rio "uma quantidade enorme de asilados políticos", calculada, por baixo, numa estimativa do Globo, em "mais de quatro mil pessoas perseguidas por regimes militares da América do Sul". Outro jornalista, José Casado, elevou o número para cinco mil. Ou seja, o cardeal era um agente duplo. Publicamente, apoiava a ditadura e, por baixo dos panos, na clandestinidade, ajudava quem lutava contra. Só faltou arranjarem um codinome para ele, denominado pelo papa Bento XVI como "o intrépido pastor".
 
Seria possível acreditar nisso, se o jornal tivesse entrevistado um por cento das vítimas. Bastaria 50 perseguidos nos contarem como o cardeal com eles se solidarizou. No entanto, o jornal não dá o nome de uma só - umazinha - dessas cinco mil pessoas. Enquanto isto não acontecer, preferimos ficar com o corajoso depoimento de Hildegard Angel, cujo irmão Stuart, foi torturado e morto pelo Serviço de Inteligência da Aeronáutica. Sua mãe, a estilista Zuzu Angel, procurou o cardeal e bateu com a cara na porta do palácio episcopal.
 
Segundo Hilde, dom Eugênio "fechou os olhos às maldades cometidas durante a ditadura, fechando seus ouvidos e os portões do Sumaré aos familiares dos jovens ditos "subversivos" que lá iam levar suas súplicas, como fez com minha mãe Zuzu Angel (e isso está documentado)". Ela acha surpreendente que os jornais queiram nos fazer acreditar "que ocorreu justo o contrário!", como no filme "Uma cidade sem passado".
 
Mas não é tão surpreendente assim. O texto de Hildegard menciona a grande habilidade, em vida, de dom Eugenio, em "manter ótimas relações com os grandes jornais, para os quais contribuiu regularmente com artigos". As azeitadas relações com os donos dos jornais e com alguns jornalistas em postos-chave continuaram depois da morte, como é possível constatar com a cobertura do velório. A defesa de dom Eugênio, na realidade, funciona aqui como uma autodefesa da mídia e do poder.
 
Os jornais elogiaram, como uma virtude e uma delicadeza, o gesto do cardeal Eugenio Sales que cada vez que ia a Roma levava mamão-papaia para o papa João Paulo II, com o mesmo zelo e unção com que o senador Alfredo Nascimento levava tucumã já descascado para o café da manhã do então governador Amazonino Mendes. São os rituais do poder com seus rapapés.
 
- "Dentro de uma sociedade, assim como os discursos, as memórias são controladas e negociadas entre diferentes grupos e diferentes sistemas de poder. Ainda que não possam ser confundidas com a "verdade", as memórias têm valor social de "verdade" e podem ser difundidas e reproduzidas como se fossem "a verdade" - escreve Teun A. van Dijk, doutor pela Universidade de Amsterdã.

A "verdade" construída pela mídia foi capaz de fotografar até "a presença do Espírito Santo" no funeral. Um voluntário da Cruz Vermelha, Gilberto de Almeida, 59 anos, corretor de imóveis, no caminho ao velório de dom Eugênio, passou pelo abatedouro, no Engenho de Dentro, comprou uma pomba por R$ 25 e a soltou dentro da catedral. A ave voou e posou sobre o caixão: "Foi um sinal de Deus, é a presença do Espírito Santo" - berraram os jornais. Parece que vale tudo para controlar a memória, até mesmo estabelecer preço tão baixo para uma das pessoas da Santíssima Trindade. É muita falta de respeito com a fé das pessoas.

- "A mídia deve ser pensada não como um lugar neutro de observação, mas como um agente produtor de imagens, representações e memória" nos diz o citado pesquisador holandês, que estudou o tratamento racista dispensado às minorias étnicas pela imprensa europeia. Para ele, os modos de produção e os meios de produção de uma imagem social sobre o passado são usados no campo da disputa política.
 
Nessa disputa, a mídia nos forçou a fazer os comentários que você acaba de ler, o que pode parecer indelicadeza num momento como esse de morte, de perda e de dor para os amigos do cardeal. Mas se a gente não falar agora, quando então? Stuart Angel e os que combateram a ditadura merecem que a gente corra o risco de parecer indelicado. É preciso dizer, em respeito à memória deles, que Dom Eugênio tinha suas virtudes, mas uma delas não foi, certamente, a solidariedade aos perseguidos políticos para quem os portões do Sumaré, até prova em contrário, permaneceram fechados. Que ele descanse em paz!
 
P.S. - O jornalista amazonense Fábio Alencar foi quem me repassou o texto de Hildegard Angel, que circulou nas redes sociais. O doutor Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, historiador e professor da Universidade Federal do Amazonas, foi quem me indicou, há anos, o filme "Uma cidade sem passado". Quem me permitiu discutir o conceito de memória foram minhas colegas doutoras Jô Gondar e Vera Dodebei, organizadoras do livro "O que é Memória Social" (Rio de Janeiro: Contra Capa/ Programa de Pós- Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2005). Nenhum deles tem qualquer responsabilidade sobre os juízos por mim aqui emitidos.
P.S. - A ilustração que foi acrescentada é do meu querido parceirinho Fernando Assaz Atroz
http://assazatroz.blogspot.com.br/

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Operação Condor: Jornalista chilena defende investigação sobre morte de Jango

Mônica González, autora de várias investigações envolvendo a Operação Condor, acredita que a morte do ex-presidente brasileiro João Goulart durante seu exílio na Argentina tem "a marca" do esquema repressivo coordenado das ditaduras sulamericanas. A jornalista considera que há elementos suficientes para supor que o presidente João Goulart foi vítima ca Condor e que a prova disso exige uma investigação coordenada em várias países. González considera "plausível' a hipótese do envenamento.

Mônica González, autora de várias investigações envolvendo a Operação Condor, acredita que a morte do ex-presidente brasileiro João Goulart durante seu exílio na Argentina tem "a marca" do esquema repressivo coordenado das ditaduras sulamericanas. A jornalista considera que há elementos suficientes para supor que o presidente João Goulart foi vítima ca Condor e que a prova disso exige uma investigação coordenada em várias países. González considera "plausível' a hipótese do envenamento.

A morte do ex-presidente brasileiro João Goulart durante seu exílio na Argentina “tem a marca” da Operação Condor, esquema repressivo coordenado das ditaduras sulamericanas e, por isso, só será esclarecida se investigada coordenadamente em vários países, defende a jornalista chilena Mônica González.

“Há elementos suficientes para supor que o presidente João Goulart (deposto em 1964) foi vítima da Operação Condor e considero que são estes casos emblemáticos que merecem ser tratados prioritariamente no Brasil, disse González a jornalistas ao participar de um debate sobre a Condor, em Brasília.

Para que essa investigação chegue perto da verdade, defendeu ainda a jornalista chilena que já investigou muitos casos envolvendo a Operação Condor, é preciso que haja uma colaboração de vários países e que o Brasil receba os documentos que já foram encontrados no Uruguai, no Chile e na Argentina.

Os familiares de João Goulart já disseram que o ex-presidente representava uma ameaça para o ex-ditador brasileiro Ernesto Geisel e não descartam a possibilidade que sua morte foi resultado de um processo de envenenamento implementado por agentes de inteligência da ditadura.

Mônica González considera essa hipótese plausível, embora não disponha de provas para afirmar que aconteceu de fato. Mas ela lembrou que o envenenamento era um método aplicado naqueles anos. A jornalista realizou investigações no Chile e revelou como e onde se produziram substâncias tóxicas utilizadas para assassinar dirigentes políticos.

Ela não descarta que João Goulart tenha sido morto com uma dessas “armas químicas”. A jornalista chilena está investigando agora o uso de uma toxina para assassinar o ex-presidente chileno Eduardo Frei morto em 1981.

Site Carta Maior

sábado, 7 de julho de 2012

Em dez dias Comissão da Verdade terá site próprio

 
Dentro de dez dias, a sociedade brasileira poderá acompanhar diariamente o andamento da Comissão Nacional da Verdade. Além de contar com uma assessoria de imprensa, a Comissão criará um site dedicado a divulgar e dar transparência às atividades e descobertas realizadas ao longo do seu trabalho.

Segundo a advogada Rosa Maria Cardoso da Cunha, uma das sete integrantes da Comissão, as declarações serão divulgadas quando o depoente não pedir sigilo. Caso peça, seu direito ao sigilo será respeitado. “Se alguém sabe de fatos importantes e deseja falar sigilosamente, nós vamos ouvi-lo e respeitar o sigilo. Isso faz parte do trabalho de investigação”, afirmou.

Ela contou ainda que nos próximos dias os integrantes da Comissão irão se reunir com representantes de comitês da memória e da verdade que funcionam há mais de trinta anos em todo o país. Esses comitês são integrados principalmente por ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos. “São grupos estruturados e bem articulados, que já trabalharam intensamente na recuperação da história. Queremos conhecer seu trabalho, para poder ir além”, afirmou Rosa Maria.

A Comissão também decidirá, nesta segunda, sobre os depoimentos de jornalistas e historiadores que já realizaram pesquisas e reuniram documentos sobre a ditadura brasileira.

Enquanto isso, na Argentina...
O ex-ditador argentino, general Jorge Rafael Videla, que já foi condenado à prisão perpétua em 2010 e amarga vários processos nas costas, acaba de ser novamente condenado. Desta vez, a 50 anos de prisão por conta do sequestro de bebês, filhos de presos políticos, durante a ditadura militar argentina (1976-1983). É a primeira vez que a Justiça daquele país declara que houve um plano sistemático de sequestro de recém-nascidos no período militar.

Até então, os casos eram tratados de forma isolada. A nova abordagem permite, no entanto, que esses crimes sejam considerados de lesa humanidade, podendo levar à detenção de outros envolvidos. Segundo a associação Avós da Praça de Maio, 500 bebês foram sequestrados durante a repressão argentina e entregues para famílias de militares. Até agora, apenas 105 deles – na faixa dos 30 anos - reencontraram seus familiares de origem.

É como sempre digo: a verdade virá à tona. Ainda não chegamos ao ponto que os argentinos estão, mas não há como não chegar lá. A instituição da Comissão da Verdade foi um passo importante e ela está mostrando boa disposição para o trabalho que tem a realizar. Um passo decisivo para que todo país possa tomar conhecimento dos crimes da ditadura.

Como prova o exemplo argentino, os crimes de lesa-humanidade não prescrevem. Nem podem ser anistiados, como já prevê a legislação internacional, embora esta tenha sido a tentativa dos militares ao pressionar o Congresso pela aprovação da nossa Lei da Anistia. Mas, uma vez que a verdade vá sendo conhecida e amplamente divulgada, criam-se as condições para que o parlamento revogue a lei, ou para que se faça uma consulta popular, plebiscito ou referendo com esta finalidade.

domingo, 1 de julho de 2012

O Cabeludo e o Guerrilheiro - Marcus Veras*


Quando o Thomaz entrou no apartamento da Nascimento Silva onde eu me abrigava, a primeira coisa que me chamou a atenção foi a roupa. Aquele homem alto, branco, cabelos negros, estava impecavelmente vestido para quem era um guerrilheiro recém-saído da prisão. Calça clássica com vinco, camisa social impecável, o mais impressionante talvez fossem os sapatos, negros e reluzentes. Para destoar, o enorme saco de marinheiro onde ele empilhava e arrastava seus pertences.

As circunstâncias que levaram Thomas Antonio Meirelles, oriundo do PCB e dirigente da Aliança Libertadora Nacional àquele apartamento onde eu me encontrava em meados de 1973 não vêm ao caso. Fazem parte do inventário da derrota que a repressão impôs à luta armada e devem ser discutidas em cadernos de história, sociologia, entre a esquerda que sobrou e a que ainda resiste. Aqui, basta acrescentar que meus queridos amigos João Santana e Vera Maria, titulares do cafofo, me avisaram da chegada do hóspede, e foram passar alguns dias fora, mesmo porque João já havia puxado uma temporada em cana e ela, sua advogada, tirou-o da cadeia para dentro de seu coração. Então, o melhor mesmo era diminuir o índice de bandeira no apartamento.

Bem, ali estava eu, diante de um homem encurralado, pois com sua organização destroçada Thomaz procurava contato com outros sobreviventes. Mas nada indicava o desespero que certamente vivia: seu comportamento era calmo, tranqüilo, observador. E mais: bem humorado. Naquele tempo, meus interesses eram poucos: o violão, sobreviver com frilas, descolar algum para custear a artesanía de meus cigarros, nada de muito futuro, como se vê. Sob esse ponto de vista, eu e ele tínhamos pelo menos um ponto de contato – nada de muito futuro, já se veria.

Partilhamos o apartamento por cinco ou seis dias. Eu possuía alguns fragmentos da história dele; ele não tinha idéia de quem eu fosse. De posse de meus cadernos de música, eu estudava no quarto, ele lia na sala. Nossas conversas eram rápidas e objetivas, onde encontrar o sabonete, o lixo deixa que eu tiro, se precisar de um travesseiro me avisa. Educadíssimo, Thomaz era um hóspede quase perfeito, não fosse o diabo daquele saco de marinheiro, que um dia largou aberto na sala enquanto tomava banho, o revólver 38 à mostra sobre a pilha de roupas.

Uma noite, depois de uma sessão de escalas e legattos ao violão, a distância entre nós diminuiu; da minha parte, após o consumo de um cigarro artesanal de excelente qualidade; por parte dele, o desejo de entender quem era o cabeludo com quem partilhava o cafofo. Conversamos sobre arte, cinema, música, ele contou algumas experiências vividas na extinta União Soviética. Relembrou seus tempos de estudante na Universidade em Moscou; eu contei que queria ser músico profissional, um compositor. Ele sorria, tinha os olhos alegres. Apesar do gelo quebrado, eu mantinha o cuidado: naqueles tempos a diferença entre não-saber e ter que engolir podia ser muito, muito dolorosa.

Numa noite de sábado, uma gloriosa noite de sábado em Ipanema, nenhum dos dois agüentava mais ficar em casa. Não sei de quem partiu a ideia, mas quando deu oito horas da noite saímos para jantar. Eu, com aquelas calça e jaqueta jeans quase furados, uma beleza de cabeleira balançando ao vento, sem lenço nem documento. Ele, impecável em um conjunto de tons escuros, o cabelo penteado e contido com esmero, será que portava seu 38? Caminhávamos lado a lado, duas gerações que se esbarravam em um determinado cotovelo do tempo histórico. Devíamos fazer um conjunto exótico para que nos visse, um Quixote e um Sancho Pança sem um Cervantes para eternizá-los. Pior, certamente com um meganha já vigiando nossos passos.

Jantamos ou apenas comemos sanduíches? Já não me lembro. Em seguida, pegamos a sessão das dez do falecido Cine Pax. Tampouco me recordo do filme. Mas me lembro muito bem do nosso caminho de volta até o apartamento da Nascimento Silva, a conversa descontraída. A noite, espantosamente calma e agradável, era o momento de sossego antecedendo a tempestade que em breve se abateria sobre ele. Os dois últimos dias que passamos juntos foram mais efêmeros do que costumam ser os dias, apenas vivemos sem pressa aquele clima de distensão dentro do cafofo ipanemenho, na contramão do que acontecia nas ruas, no país. Certa manhã saí para fazer um frila; na volta, Thomaz não estava. Ele e seu saco de marinheiro tinham seguido para a última escala.

Para escrever este texto e situá-lo, consultei, alem da minha memória, blogs e sites ligados ao tema como o Tortura Nunca Mais, além de meu compadre João Santana. Li notícias da família de Thomaz, a angústia de sua viúva, Miriam, de seus filhos, Larissa e Togo, de seus amigos (vou citar dois, mas são muitos, José Ribamar Bessa Freire e Carlos Vereza), por jamais terem notícia de seu corpo após sua prisão e assassinato em 7 de maio de 1974. Certamente não serve de consolo, mas aquela temporada ipanemenha foi talvez o último desfrute do guerrilheiro encurralado que jamais perdeu a elegância. Por sorte ou por azar, vá se saber, eu estava lá. E por isso (e muito mais) junto minha voz a deles: cadê Thomazinho?